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sábado, 8 de dezembro de 2012

Reinaldo Azevedo, portador de deficiência, acusa a vaia injusta que Dilma recebeu; eu poderia vaiá-la também, mas por outros motivos. Ou: Deficientes, como eu, também podem ler Platão e Descartes! Mal não faz!




É complicado viver em tempos politicamente corretos e intelectualmente estúpidos. Grupos sociais, minorias, correntes organizadas de opinião etc. se consideram donas da linguagem e das palavras. Danem-se a etimologia, a gramática, o dicionário, qualquer coisa que remeta ao universo objetivo da linguagem. Se eles acharem que determinado vocábulo tem sentido pejorativo, então tem. Não lhes basta reivindicar proteção, direitos especiais ou reparação, tudo compreensível e só raramente ilegítimo. Apropriam-se também do domínio da linguagem e passam a impor a sua vontade – ainda que contra os fatos, a história, a etimologia, a gramática, o dicionário… Viram juízes das palavras. A PLC 122, a tal lei contra a homofobia, também tem este aspecto absurdo: cria uma polícia da linguagem sob o pretexto de proteger direitos. 

Vamos ver. Este que lhes fala é “portador” de dois buracos no crânio – ou, se quiserem, sou um não portador de dois pedaços de ossos correspondentes que deveriam estar lá; deveriam, bem entendido, segundo o que se dá com a maioria, que tem o crânio intacto. 

Apareceram dois tumores no meu cocuruto, e lá se me foram dois pedaços da cabeça, numa cirurgia simpaticamente chamada de “craniectomia”. Uma das falhas de que sou portador é coberta pelo cabelo; a outra é visível, no alto da testa, no centro da cachola. Nos debates da VEJA.com, ele se mostra em seu esplendor. Pode lembrar um golfinho. Mas não me peçam para fazer momices, como Flipper, hehe… Não rola. Depois de dois uísques, talvez eu declame alguma coisa, mas só a pedidos… insistentes! 

Há até uma história curiosa sobre isso. Um senhor, já coroa, desses leitores que não gostam de mim – é raro, mas os há, rá, rá, rá – enviou-me certa feita uma mensagem eivada de ofensas, coisas grotescas mesmo. Num dado momento, ele afirmou que os tumores só apareceram na minha cabeça porque eu não fumava maconha. A história está em arquivo. Mais tarde, ele se tornou, acreditem!, blogueiro oficial do Planalto, na gestão Lula. Sim, o sujeito que me acusou de ser o responsável pelos meus próprios tumores (por não fumar maconha) virou blogueiro de Lula. Essa gente pode me espantar, sim, mas não me surpreende. Volto ao ponto. 

Nesta terça, a presidente Dilma Rousseff participou da Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiências. Eu poderia, por óbvio, estar lá. Mas estou aqui… Dilma decidiu exaltar a tecnologia inclusiva que dá “melhores oportunidades para portadores de deficiências”. Foi vaiada. É proibido falar assim, fiquei sabendo hoje. Dilma também só descobriu isso nesta terça. 

O jeito correto, senhores leitores, de vocês se referirem a nós é outro. Ela foi alertada a tempo pela assessoria e mandou brasa: 

“Desculpa, eu quis dizer ‘pessoas com deficiência’. Eu entendo que vocês tenham esse problema. Portador não é muito humano, né? Pessoa é”.

Aí foi aplaudida! Pois é… Os petralhas dizem que os médicos arrancaram um pedaço do meu cérebro quando extirparam os dois tumores do crânio, mas acho que dizem isso só porque não me amam, embora sejam viciados em mim. Euzinho aqui, “a nível de pessoa com deficiência” (hehe…), não gostei mesmo foi da segunda intervenção de Dilma. A primeira me pareceu ok, ué. Que filólogo, etimologista, gramático ou especialista em linguagem decidiu que “portador” é coisa negativa? Se há alguma diferença entre “portador de deficiência” e “pessoas com deficiência”, eu diria que a balança pode pesar a favor da primeira expressão. 

Ora, nada impede portadores de deficiência de ler Platão ou Descartes, por exemplo. Eu leio sempre, mesmo portando buracos extras na cabeça. Procuro dar eficiência máxima ao que me resta de dois dos orifícios regulares, os olhos – que nunca prestaram, com uma miopia de fazer inveja ao Mr. Magoo. Ora, aquilo que “porto“ não sou eu em essência, não me define. Aquilo que porto é só uma realidade contingente, uma expressão, digamos, do mundo das sombras. No mundo das ideias, hehe, sou perfeito, como qualquer um. Ou minha alma já teve acesso à verdade, e tudo o que aprendo são reminiscências (Platão) ou, melhor ainda, já nasci com algumas verdades inatas, postas na minha mente por Deus (Descartes). Assim, pouco importa se me falta a perna, se me falta o braço, se me faltam pedaços do crânio, defino-me como humano. 

Portar uma deficiência, pois, é bem menos definidor do que sou do que me apresentar como uma “pessoa com deficiência”. Nesse caso, essa preposição mais esse substantivo se juntam para formar uma locução adjetiva e alterar a própria natureza do substantivo. A pessoa a quem falecem características que assistem a maioria só será igual, sendo diferente, se “portar a deficiência”, não se for uma “com deficiência”. Portar uma deficiência é um acidente no sujeito, que não muda a sua essência, que será sempre completa; ser um “com deficiência” integra a essência do sujeito. O que querem os deficientes e toda gente que se mobiliza contra preconceitos? 

Os portadores de deficiência ou pessoas com deficiência não são donas da linguagem, não! Não são donas da palavra. Nem essa minoria, que agora integro, nem outra chamada “minoria sociológica” qualquer: mulheres, gays, negros etc. 

Eu poderia vaiar Dilma por uma porção de motivos – por esse, jamais! “A nível de pessoa” com deficiência, eu não gostei foi de sua segunda intervenção. Parece-me, aí sim, que ela optou por infantilizar o público que a ouvia, por tratá-lo com certa condescendência piedosa, usando, o que não lhe é raro, as palavras de maneira mais ou menos desastrada. Depois da vaia injustificada, para triunfo da lógica, veio o aplauso injustificado. 

Ninguém, pessoa com deficiência ou não, tem o direito de impor ao outro a sua ignorância como medida de correção política. 
Por Reinaldo Azevedo

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